"Considerando os danos causados pelas privatizações à
sociedade e aos trabalhadores brasileiros, a postura de um governo “de
esquerda”, como o nosso, deveria ser a de engavetar os programas neoliberais.
Porém, contrariando o esperado, estes projetos continuam a todo vapor, com
diversas privatizações – com destaque para as dos aeroportos, um contrassenso
do que sempre defendeu o Partido dos Trabalhadores e do que a Presidente da
República Dilma Rousseff pregou em sua campanha eleitoral.
Houve várias tentativas de privatizar a Infraero (Empresa
Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária). Porém, houve entraves ao processo,
tais como: a resistência da Aeronáutica ao projeto, principalmente em
aeroportos onde existem bases militares; o fato de os aeroportos serem
considerados áreas de fronteiras, o que poderia implicar riscos à soberania
nacional; e principalmente o fato de a grande maioria dos aeroportos serem
deficitários e dependentes. Poucos são altamente rentáveis, e a iniciativa
privada sempre demonstrou interesse apenas pelos lucrativos, ficando a
incógnita sobre como manter os demais.
A Infraero é uma empresa pública
nacional com 38 anos de existência, que administra com recursos próprios 67
aeroportos, 69 grupamentos de navegação aérea, 51 unidades técnicas de
aeronavegação, e 34 terminais de logística de carga. Estes aeroportos atendem a
padrões internacionais e concentram 97% do transporte aéreo do Brasil. A rede
administrada pela Infraero é mantida com recursos de aproximadamente 15
aeroportos altamente rentáveis; os demais são deficitários e necessitam de
subsídios, mas são necessários, pois auxiliam a navegação aérea e servem de
posto avançado e estratégico das Forças Armadas na manutenção da soberania
nacional. Outros servem para a integração de um país com dimensões continentais
como o Brasil. Além disso, parte dos recursos arrecadados pela Infraero é destinada
ao Comando da Aeronáutica e ao Tesouro Nacional.
A Infraero é reconhecida internacionalmente pela excelência
em administração aeroportuária, e foi cogitada para administrar aeroportos em outros
países, dado o seu renome internacional – o que seria formidável, pois traria divisas
ao Brasil.
Após o acidente da companhia aérea Gol em 2006, deflagrou-
se uma crise no setor aéreo, amplamente divulgada pela imprensa com o nome de
“apagão aéreo”. A grande mídia atacou exaustivamente a empresa, atribuindo
somente à Infraero responsabilidade pelo conjunto de problemas do setor aéreo.
No entanto, muitos destes problemas não diziam respeito à estatal; outros órgãos
públicos e privados, como as companhias aéreas, foramresponsáveis por boa parte
dos problemas, fruto de um ambiente com regulação e fiscalização frouxa,
principalmente por omissão da ANAC (Agência Nacional de Aviação Civil), que
regula o setor e o fazia de forma branda.
Sob os argumentos de atender à alta demanda interna;
resolver o problema da falta de recursos; melhorar a gestão da Infraero, tornando-a
mais atrativa para abertura de capital; e concluir a infraestrutura necessária
para a realização da Copa do Mundo de 2014 e Olimpíadas de 2016, o governo
federal decidiu a princípio privatizar quatro aeroportos, tornando a Infraero
sócia minoritária nestas unidades, perdendo o poder de decisão para o
investidor privado.
Estas privatizações têm como pré-requisito a participação de
grupos estrangeiros na sociedade, pois assim condiciona o edital ao exigir
experiência em administração aeroportuária, e no Brasil somente a própria
Infraero atende a esse requisito. Outro fato de relevada importância é que a
compra é financiada com dinheiro público, através do BNDES, em até 80% da
aquisição.
O aeroporto de São Gonçalo do Amarante, em Natal (RN), que
está em fase de construção e substituirá o atual aeroporto Augusto Severo, foi
o primeiro escolhido para privatização. A escolha não foi por acaso: por ser um
aeroporto em construção, a rejeição dos trabalhadores e da sociedade seria
menor. Além disso, São Gonçalo do Amarante possui um enorme potencial turístico
e será um dos grandes aeroportos de cargas deste país, pois será a porta de
entrada do Nordeste para mercadorias de alto valor agregado (característica da
carga do modal aéreo), devido à sua localização privilegiada, no ponto mais
próximo do Brasil com EUA e Europa.
Na sequência de São Gonçalo do Amarante, foram privatizados os
aeroportos de Brasília, Guarulhos e Campinas, três dos maiores e mais rentáveis
aeroportos do país, responsáveis por cerca de 70% da receita de toda a rede
administrada pela Infraero. Retirar da Infraero estas unidades vai deixar toda
a rede dependente de recursos do Tesouro Nacional. Portanto, passam a disputar
os já escassos recursos da saúde, educação, cultura etc.
O momento não poderia ser mais oportuno e favorável: depois
da sabatina da grande mídia e com a enorme demanda, a falta de oposição de
centrais sindicais, sindicatos, e partidos políticos, e a realização da Copa e
Olimpíadas, o céu está de brigadeiro para a privatização dos aeroportos, algo
que nem o governo Fernando Henrique Cardoso conseguiu fazer.
O problema da Infraero é que a empresa durante muito tempo
foi mal gerida, carregando em seu quadro diversos apadrinhados políticos em
cargos de confiança, sem falar nos supostos esquemas de corrupção. Porém, mesmo
mal gerida, a Infraero administra a rede aeroportuária com recursos próprios, sem
depender da União; contudo, os avanços conquistados pelo governo Lula – o
crescimento econômico do país, a redução da pobreza e desigualdade social –
proporcionaram a ascensão econômica da população e o acesso desta ao transporte
aéreo. Somando-se a isso a facilidade de pagamento das passagens e a queda de
preços estimulada pela concorrência, naturalmente houve uma explosão da demanda
por transporte aéreo.
A demanda por transporte aéreo no mundo cresce 5% ao ano,
enquanto no Brasil este crescimento é em torno de 10% ao ano. O grande desafio
é ampliar a infraestrutura aeroportuária, que é onerosa, a tempo de atender a
enorme demanda. O governo federal sabe que a solução do problema envolve
principalmente melhorar a gestão dos aeroportos e regulamentar o setor, e já vem
intervindo com atitudes que já deveriam ter sido tomadas há muito tempo.
A primeira grande medida para reorganizar o setor aéreo foi
a criação da SAC (Secretaria de Aviação Civil), à qual passaram a estar
vinculadas a ANAC e Infraero. Outras medidas efetivas foram: a criação da
Conaero (Comissão Nacional de Autoridades Aeroportuárias), com a finalidade de
coordenar diversos órgãos que atuam nos aeroportos; a criação dos CGAs (Centros
de Gerenciamento Aeroportuário); as campanhas da Infraero para orientar os
passageiros; a criação de postos de juizados especiais nos aeroportos, para
passageiros que tenham problemas com as companhias aéreas; a flexibilização das
licitações para as obras da Copa e que valem para os aeroportos através do RDC
(Regime Diferenciado de Contratações); a criação do passaporte eletrônico, que
agilizará a fiscalização feita pela Polícia Federal; a resolução 196 da ANAC,
que obriga companhias aéreas que atendam mais de 500 mil passageiros por ano a
manter postos de atendimento presencial nos aeroportos para receber reclamações
de seus clientes; e a dispensa da declaração de bagagem pela Receita Federal.
Seria realmente necessária a privatização dos aeroportos
depois de todas estas medidas? Será que o mérito destas ações e seus resultados
serão atribuídos às privatizações? Por que privatizar somente os aeroportos
rentáveis e não em blocos de rentáveis com deficitários? A necessidade de
capital privado para fazer frente aos investimentos necessários é justificável,
porém não poderia ser feito através da abertura de capital da Infraero,
trazendo inerente a esse modelo de sociedade as melhores práticas de gestão e
mantendo a possibilidade de a Infraero administrar aeroportos fora do Brasil, angariando
divisas para o país? Se o BNDES pode financiar 80% da compra dos aeroportos para
grupos estrangeiros, porque não pode financiar os investimentos necessários?
A privatização dos aeroportos pode acarretar diversos
problemas, sendo os principais a evasão de divisas que poderiam modernizar toda
a nossa rede de aeroportos; a precarização para os trabalhadores; o risco à
soberania nacional, pois podemos ser invadidos pelos aeroportos; e o risco de
ações terroristas e de entrada de drogas e armas pelos aeroportos.
Além disso, com a ausência do Estado como administrador, perdemos
o princípio da isonomia, pelo qual todos têm o mesmo tratamento, independente
da condição financeira. O administrador privado tende a aumentar os preços que
estão sob sua autonomia e pressionar o governo para que faça o mesmo com as
tarifas que são reguladas pela ANAC, para conter a demanda, que é maior que a
capacidade instalada, fazendo com que as classes C e D da população voltem para
as rodoviárias. Acabará o incentivo às empresas brasileiras exportadoras via
modal aéreo, que pagam preços irrisórios à Infraero para utilizar seus
terminais de carga. Diversos programas sociais mantidos pela Infraero para as
comunidades em torno dos aeroportos deixarão de existir; as comunidades em
torno dos aeroportos leiloados correm o risco de ser desapropriadas pelos
investidores através da Justiça. E deixará de existir a distribuição de renda
proporcionada pela manutenção da rede de 67 aeroportos.
O empenho do governo federal para tornar este investimento
ainda mais interessante para os investidores é tanto que criou condições para
que o lucro dos interessados seja maior ainda. Esta postura ficou evidente com
a criação da taxa de conexão em Brasília, para tornar o aeroporto atrativo, e
com o fato de o governo federal abrir mão de parte de suas receitas nas tarifas
aeroportuárias em favor dos operadores dos aeroportos. E o pior de tudo! Em um
cenário de crise, onde a Espanha suspende a privatização de seus aeroportos
pelo momento ser claramente desfavorável.
* Plínio Erickson é administrador de empresas, técnico em
logística, aeroportuário e membro do CCPI (Comitê Contra a Privatização da
Infraero)".